Com as amplas possibilidades de acesso aos documentos antes restritos, garantido pela Lei de Acesso à Informação, serão possíveis construções narrativas nas plataformas on line, compartilhamento dessas produções, acesso aos depoimentos dos agentes sociais que se mobilizaram na luta por uma democracia, condicionada à ideia de anistia atrelada impunidade e ao esquecimento, cujo posicionamento diametralmente oposto foi silenciado nos currículos, tendo cada vez menos eco nos livros didáticos em sala de aula ou com suas complexidades reduzidas à luta por uma anistia ampla, geral e irrestrita, que não foi a anistia que vigorou e que, com seu discurso conciliatório, pacificador e harmonizador, permanece reverberando até os dias de hoje.
Na continuação dos fundamentos que a BNCC apresenta como centrais, como “o compromisso da escola de propiciar uma formação integral, balizada pelos direitos humanos e princípios democráticos”, estes podem ser problematizados nas aulas de história, levando-se em consideração neste estudo exploratório a questão da anistia, já que o próprio documento afirma que
é preciso considerar a necessidade de desnaturalizar qualquer forma de violência nas sociedades contemporâneas, incluindo a violência simbólica de grupos sociais, que impõem normas, valores e conhecimentos tidos como universais e que não estabelecem diálogo entre as diferentes culturas presentes na comunidade e na escola (BRASIL, BNCC, 2017, p. 54).
Para Marcos Napolitano (2015), os processos de pacificação e transição, saídos de contextos em que houve o uso sistemático de violência política, são geralmente acompanhados por “complexas operações de reconstrução de memória, visando a superar as marcas traumáticas e fissuras no tecido social e nas instituições.” Articulados entre complexas operações entre “lembrança e esquecimento”, envolvem um amplo espectro de atores sociais e políticos que disputam a hegemonia desse processo (NAPOLITANO, 2015, p. 96). A articulação entre “verdade, justiça e reparação”, como ações históricas e sucessivas no tempo, exemplifica o tipo de processo de superação de um período traumático (o fim da ocupação nazista da França, bem como o fim da ditadura argentina e sua transição) que “estabeleceram padrões de memória calcados na reconstrução de ‘discursos de verdade’ e no estabelecimento de responsabilidades jurídicas e políticas em processos de superação de traumas políticos” (NAPOLITANO, 2015, p.97) Ao focalizar sobre o caso da memória da transição brasileira, o autor afirma que
a verdade é filha do poder e nem sempre é irmã da ética. Toda crítica historiográfica se defronta com esse pressuposto. No caso brasileiro, novamente ocorre uma estranha inversão desse axioma: os militares, vitoriosos politicamente no golpe de 1964 e donos do poder – com amplo apoio civil, diga-se – por 20 anos (sem contar a bem-sucedida tutela do período da transição democrática), foram os grandes perdedores da batalha da memória. Hoje, são os atores mais ressentidos com o lugar a eles reservado na história ensinada nos livros e lembradas pelos “formadores de opinião” (ou seja, a mídia hegemônica, a maioria das lideranças políticas, a universidade, os agentes culturais mais legitimados do mercado)” (NAPOLITANO, 2015, p.98).
Deste modo, ao inserirmos a discussão da anistia em uma perspectiva mais ampla, em um projeto de distensão de um regime rigidamente controlado pelos militares, temos como correlações possíveis as questões sobre as violências cometidas pelo Estado e seus agentes embasados pela Lei de Segurança Nacional (LSN), as arbitrariedades, perseguições e punições cometidas “dentro da normalidade” dos Atos Institucionais, objeto de maior reflexão a frente, e sua revogação dentro uma “transição” pactuada, os testemunhos, traumas ou memórias das pessoas envolvidas na luta política ou em sua repressão no período ouvidas[1] pelas Comissões da Verdade ou Caravanas da Anistia.
Contudo, na esteira da análise aqui privilegiada, a anistia de 1979 voltou a ser noticiada com a criação, em 2010, da Comissão Nacional da Verdade[1]. Desde sua criação, passando pelas notícias referentes às apurações com base em depoimentos e documentação levantada do período até a divulgação de seu relatório final, e suas respectivas recomendações para a sociedade brasileira, facilmente são encontradas através dos mecanismos de busca e pesquisas de notícias na web, links para notícias como “Redes sociais da Comissão Nacional da Verdade continuam em expansão”, “Comissão da Verdade inicia trabalho com apoio da Comissão de Anistia”, “Comissão da Verdade aponta 300 nomes por violação no regime militar”, “Comissão da Verdade responsabiliza 377 por crimes durante a ditadura” ou “Dilma: “O silêncio é sempre uma grande ameaça”.
A atualidade da escolha do tema da anistia pode ser encontrada nas questões concernentes ao impasse jurídico sobre a imprescritibilidade dos crimes de tortura, por exemplo, prática recorrente do “Terror de Estado” (PADRÓS, 2007, p. 49) brasileiro durante o regime. As próprias notícias das tentativas de revisão da lei de 1979 e de sua rejeição pelo STF também podem vir à tona. O que fundamentaria essa revisão? Quais as argumentações da rejeição à essa revisão? A própria concepção de que os “dois lados[2]” deveriam ser investigados[3], é, conforme afirma Carlos Fico (2012), sóbrio, contudo falso, uma vez que
As comissões da verdade são criadas para apurar crimes cometidos pelo Estado, não por pessoas. Mais importante, entretanto, é o seguinte: o Estado brasileiro, mesmo durante o regime autoritário, poderia ter combatido a luta armada sem apelar para a tortura e o extermínio. Além disso, muitos ex-integrantes da luta armada – ao menos os que sobreviveram – já foram julgados e punidos (FICO, 2012, p. 49).
Outra relativização pode ser pensada aqui sobre os esclarecimentos necessários à ideia de verdade, dentro da perspectiva das comissões de anistia e de justiça de transição e direitos humanos, discutida sob uma metodologia e conceitos próprios da ciência histórica. Verdade, na acepção discutida pela tríade acima elencada e que orientou os trabalhos da CNV, seria a busca pelo esclarecimento de acontecimentos envoltos em incertezas e versões contestáveis desses fatos, especialmente após o acesso aos “documentos sensíveis” (FICO, 2012, p.53), disponibilizados através da Lei de Acesso à Informação.[4]
A ausência de maiores problematizações nas abordagens do currículo escolar em história, especialmente no que diz respeito aos “temas sensíveis”, leva a sua naturalização ou, mais além, ao silenciamento, relegando-os a meros fatos isolados em seleções e esquemas simplificados (nada fortuitos) nos livros didáticos. Em nome de uma retórica humanizadora, de um saber colaborativo, crítico, atuante e cidadão, as definições e parametrizações nos direcionam para a exigência de um ensino de história que se distancie de estereótipos e simplismos.
No que se refere às graves violações de direitos humanos ocorridos durante o regime militar brasileiro, como ficam as abordagens às esses temas sensíveis? Quando historicizados, nos remetem diretamente às questões como cidadania, justiça social, igualdade, liberdade, direitos historicamente conquistados, frutos da mobilização e luta de muitos agente sociais. No entanto, ao serem tratados como polêmicos ou parcialmente inadequados à faixa etária discente, são diminuídos em sua importância como processo histórico, eliminando a reflexão acerca das rupturas e permanências no processo histórico, de usos do passado e do engendramento de uma “atitude historiadora” acrítica, passiva e reprodutora das explicações e métodos tradicionais de construção do conhecimento histórico.
A garantia jurídica de impunidade dos agentes que atuaram na repressão dos opositores do regime, promovida pela Lei de Anistia, além do esquecimento desejado pelos legisladores e pelo governo de João Batipsta Figueiredo, bem como o apelo ao discurso conciliatório, pacificador, trazendo em seu bojo o assunto como “um passado que não deveria ser lembrado” e remetendo às feridas e cicatrizes de outrora, nos permitem refletir sobre as abordagens em sala de aula de tais temáticas e as opções, seleções, silêncios e memórias subjacentes ao posicionamento do professor e seu “lugar social” diante dessas abordagens. Assim, não revisitar esse passado ou o uso que se faz dele tem eco (ou não) dentro e fora da sala de aula.
Nesse sentido, (re)pensar a Lei de Anistia constitui-se como uma demanda do presente, uma vez que mais de 75 mil pedidos de anistia foram encaminhados ao Ministério da Justiça e ao Ministério da Defesa. A negação da revisão da Lei de Anistia pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2010, definida pela ADPF nº 153, a condenação do Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos[1] e a negação da acusação de estupro e outras torturas infligidas à Ines Ettiene Romeu pelos agentes do Estado brasileiro, atualizam a necessidade de problematização/inserção dessas questões no cotidiano escolar. As temáticas em torno da Lei de Anistia, portanto, são aqui consideradas centrais para a formação de um “cidadão crítico e atuante”, disposto a compreender a sociedade em que está inserido e com atuação sobre essa realidade e, portanto, transformá-la (ou mantê-la), fundamentando suas ações, no que concerne a educação escolar básica, no desenvolvimento de competências e habilidades para, como afirma a competência nº 7:
Argumentar com base em fatos, dados e informações confiáveis, para formular, negociar e defender ideias, pontos de vista e decisões comuns que respeitem e promovam os direitos humanos e a consciência socioambiental em âmbito local, regional e global, com posicionamento ético em relação ao cuidado de si mesmo, dos outros e do planeta (BRASIL, BNCC, 2017, p. 8).
Como apontar para uma “formação humana integral” que visa à construção de uma sociedade “justa, democrática e inclusiva”, pautada em ideais de justiça, igualdade, democracia e cidadania? Em se tratando de nosso “passado recente”, como estão sendo abordados os “temas sensíveis” em sala de aula? Como a anistia, dentro desta perspectiva, pode ser inserida no cotidiano escolar, ultrapassando as parcas linhas que lhe são dedicadas nos livros didáticos? Esta disputa pela memória não está fora do ciberespaço. A criação de alguns sites tenta “resguardar” parte dessa memória traumática, especialmente os projetos Memórias da Ditadura[2], Brasil Nunca Mais Digit@l[3], o banco de dados e acervos dos projetos Memórias Reveladas[4], Documentos Revelados[5] ou Memorial da Anistia[6]. Resultado de grandes esforços coletivos de preservação de nossa memória histórica, o marcante lema deste último, “conhecer, reparar e não repetir”, demonstra a grande preocupação e luta para não esquecermos, naturalizarmos ou silenciarmos nossa(s) história(s).
[1] Caso Gomes Lund versus Brasil, referente às violações de direitos humano durante a repressão à Guerrilha do Araguaia.
[2] Disponível em: http://memoriasdaditadura.org.br/index.html. Acessado em fevereiro de 2017.
[3] Disponível em: http://bnmdigital.mpf.mp.br/pt-br/ Acessado em fevereiro de 2017.
[4]Disponível em: http://base.memoriasreveladas.gov.br/mr/seguranca/Principal.asp Acessado em fevereiro de 2017.
[5] Disponível em: https://www.documentosrevelados.com.br/ Acessado em fevereiro de 2017.
[6] Disponível em: http://memorialanistia.org.br/ Acessado em fevereiro de 2017.
[1] E disponibilizado no endereço eletrônico HTTPS://reletóriofinalcnv.org. Acessado em dezembro de 2016.
[2] Conforme consta em seu site “A Comissão Nacional da Verdade foi criada pela Lei 12528/2011 e instituída em 16 de maio de 2012. A CNV tem por finalidade apurar graves violações de Direitos Humanos ocorridas entre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988. Conheça abaixo a lei que criou a Comissão da Verdade e outros documentos-base sobre o colegiado. Em dezembro de 2013, o mandato da CNV foi prorrogado até dezembro de 2014 pela medida provisória nº 632.” Disponível em http://www.cnv.gov.br/institucional-acesso-informacao/a-cnv.html Acessado em janeiro de 2017.
[3] Também conhecida como Teoria dos Dois Demônios.
[4] Disponível em : https://oglobo.globo.com/brasil/comissao-da-verdade-nao-investigara-crimes-de-militantes-de-esquerda-6115244#ixzz4lUt8YoFc Acessado em março de 2017.
[5] A Lei nº 12.527/2011 regulamenta o direito constitucional de acesso às informações públicas. Essa norma entrou em vigor em 16 de maio de 2012 e criou mecanismos que possibilitam, a qualquer pessoa, física ou jurídica, sem necessidade de apresentar motivo, o recebimento de informações públicas dos órgãos e entidades.