Anistia hoje

Ao inserirmos a discussão da anistia em uma perspectiva mais ampla, em um projeto de distensão de um regime rigidamente controlado pelos militares, temos como correlações possíveis as questões sobre as violências cometidas pelo Estado e seus agentes embasados pela Lei de Segurança Nacional (LSN), as arbitrariedades, perseguições e punições cometidas “dentro da normalidade” construída pelos Atos Institucionais, regovados em meio a uma “transição” pactuada, os testemunhos, traumas ou memórias das pessoas envolvidas na luta política ou em sua repressão no período ouvidas pelas Comissões da Verdade[1]  ou Caravanas da Anistia.

Embora silenciados na mídia televisiva, a publicação em portais controlados por importantes grupos de comunicação do país, como O Globo, Veja e Folha de São Paulo de notícias como: “Mulher conta torturas da ditadura para Comissão da Verdade da UFES[2]”, “Julgamento de ex-comandante do DOI-Codi reanima debate sobre anistia[3]”, “Coronel admite participação em tortura e morte nos porões[4]” ou “Lei de 1995 pode servir de modelo para anistia ao caixa dois na Câmara”[5] demonstra a atualidade das discussões sobre a anistia brasileira e reforça a ideia de seu caráter inconcluso.

Sobre a notícia sobre o possível uso da Lei de 1995 para anistiar os condenados por uso de caixa dois, poderia o professor historicizar e problematizar a ideia de anistia recentemente discutida no plenário da Câmara brasileiro. Qual “perdão” ensejado? Para quem seria essa anistia? Poderia ainda explorar o esquecimento e impunidade subjacentes à anistia de 1979, e que agora, consubstanciaria o atual projeto de anistia, conforme declara o presidente da Comissão de Constituição e Justiça, senador Edson Lobão (PMDB-MA) em entrevista ao portal O Estadão, em fevereiro de 2017. Ao ser questionado sobre seu posicionamento acerca da anistia à prática de “caixa dois”, Lobão afirma que

 

A figura da anistia existe. Todo ano, o presidente anistia alguns presos por conta disso ou daquilo. Houve a lei da anistia durante o regime militar. Resta saber se anistia tal ou qual é conveniente. Vou aguardar que a Câmara decida lá, quando vier para cá nós avaliaremos. O que eu quero dizer é que é constitucional a figura da anistia, qualquer que ela seja. Anistia não se faz somente para isso, outros crimes podem ser anistiados (O Estado de São Paulo, 11 de fevereiro de 2017).[6]

 

A atualidade da discussão sobre o caráter inconcluso da anistia, perspectiva ainda rara nos livros didáticos, como a frente será apresentado, pode ainda ser identificado no pedido ao Supremo Tribunal Federal (STF) pela atual Procuradora-Geral da República, Raquel Doge, publicado no portal da Folha de São Paulo, no dia 14 de fevereiro de 2018, em que solicita a desarquivamento e julgamento dos agentes militares acusados pelo

A atualidade da escolha do tema da anistia é encontrada, assim, nas questões concernentes ao impasse jurídico sobre a imprescritibilidade dos crimes de tortura, por exemplo, prática recorrente do “Terror de Estado” (PADRÓS, 2007, p. 49) brasileiro durante o regime. As próprias notícias das tentativas de revisão da lei de 1979 e de sua rejeição pelo STF também podem vir à tona. O que fundamentaria essa revisão? Quais as argumentações da rejeição à essa revisão? A própria concepção de que os “dois lados[7]” deveriam ser investigados[8], é, conforme afirma Carlos Fico (2012), sóbrio, contudo falso, uma vez que

As comissões da verdade são criadas para apurar crimes cometidos pelo Estado, não por pessoas. Mais importante, entretanto, é o seguinte: o Estado brasileiro, mesmo durante o regime autoritário, poderia ter combatido a luta armada sem apelar para a tortura e o extermínio. Além disso, muitos ex-integrantes da luta armada – ao menos os que sobreviveram – já foram julgados e punidos (FICO, 2012, p. 49).

 

Outra relativização pode ser pensada aqui sobre os esclarecimentos necessários à ideia de verdade, dentro da perspectiva das comissões de anistia e de justiça de transição e direitos humanos, discutida sob uma metodologia e conceitos próprios da ciência histórica. Verdade, na acepção discutida pela tríade acima elencada, e que orientou os trabalhos da CNV, seria a busca pelo esclarecimento de acontecimentos envoltos em incertezas e versões contestáveis desses fatos, especialmente após o acesso aos “documentos sensíveis” (FICO, 2012, p.53), disponibilizados através da Lei de Acesso à Informação.

[1] Testemunhos estão disponibilizados    no endereço eletrônico HTTPS://reletóriofinalcnv.org. Acessado em dezembro de 2016.

[2] Disponível em: http://g1.globo.com/espirito-santo/noticia/2014/10/mulher-conta-torturas-da-ditadura-para-comissao-da-verdade-da-ufes.html Acessado em janeiro de 2017.

[3] Disponível em: http://veja.abril.com.br/brasil/julgamento-de-ex-comandante-do-doi-codi-reanima-debate-sobre-anistia/ Acessado em janeiro de 2017.

[4] Disponível em: https://oglobo.globo.com/brasil/coronel-admite-participacao-em-tortura-morte-nos-poroes-11974900 Acessado em janeiro de 2017.

[5] Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/poder/2017/03/1868556-lei-de-1995-pode-embasar-anistia-ao-caixa-dois-na-camara.shtml Acessado em janeiro de 2017.

[6] Disponível em http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,lobao-afirma-que-anistia-a-caixa-2-e-constitucional,70001661823. Acessado em fevereiro de 2017.

[7] Também conhecida como Teoria dos Dois Demônios.

[8] Disponível em : https://oglobo.globo.com/brasil/comissao-da-verdade-nao-investigara-crimes-de-militantes-de-esquerda-6115244#ixzz4lUt8YoFc Acessado em março de 2017.