Comissão Nacional da Verdade

A Comissão Nacional da Verdade (CNV) foi criada pela Lei 12528/2011 e instituída em 16 de maio de 2012. A CNV tem por finalidade apurar graves violações de Direitos Humanos ocorridas entre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988. 

A entrega do seu relatório final , em 10 de dezembro de 2014, evidencia, na web, as disputas pela memória do regime.  Amplamente noticiado, o relatório final foi caracterizado pelo portal O Globo, em matéria veiculada às vésperas da entrega, como “uma visão unilateral da Lei da Anistia[1]” e, no seu intuito de esclarecer as circunstâncias sobre desaparecimentos, assassinatos ou tortura, definindo responsabilidades e indicando respostas para os familiares dos desaparecidos e à sociedade em brasileira, acabaria por deixar claro sua intenção “revanchista”, uma vez que

o viés que deverá ter o relatório deriva da própria contaminação ideológica do processo de criação da Comissão. Deve-se recordar a forma como a proposta foi incluída na terceira versão do Programa Nacional de Direitos Humanos, no final do segundo governo Lula. Ficava visível a intenção de se aproveitar a oportunidade para mais um ataque contra a Lei da Anistia — concedida de forma recíproca em 1979 —, a fim de permitir o indiciamento judicial de militares e outros agentes públicos, não previsto na lei, por óbvio. A manobra criou tensão no governo, entre o Ministério da Defesa e o Planalto, mas a ação do ministro Nelson Jobim e do próprio Lula evitou uma crise de razoáveis dimensões. Mas os grupos mobilizados para rever o alcance da Lei da Anistia, confirmada pelo próprio Supremo, continuam a agir. É fato que se perdeu o sentido de apaziguamento que teve a bem-sucedida negociação entre generais e a oposição, àquela época, sancionada livremente pelo Congresso. Tanto que o STF já precisou garantir a amplitude da anistia, concedida ainda no governo de João Baptista Figueiredo, o último da ditadura militar (Portal O Globo, 02 de dezembro de 2014[2]).

Sob a acusação da tentativa de reescrever a história sob a ótica dos “vencidos”, a reportagem enfatiza que a anistia foi concedida de forma recíproca e os crimes, novamente em alusão à teoria dos dois demônios em ação, ocorreram de ambos os lados. São citados nominalmente três militares mortos ou feridos por conta da ação organizada da resistência armada e que suas famílias não “receberam nada.”

O princípio da difusão dessas informações e a produção, resultado da interatividade entre os usuários, de conhecimento colaborativo se adéquam às perspectivas de ampla divulgação ou mesmo apuração dos fatos ocorridos, como no caso da Comissão Nacional da Verdade, com promoção de medidas e ações que possam assegurar a não repetição das violações de direitos humanos. De acordo com a inversão dos pressupostos que garantiam a lógica de sigilo a certos documentos, esses acervos ou repositórios, especialmente aqueles que tratam dos documentos oriundos da rede de vigilância política do regime militar, passam a ser colocados à disposição da sociedade, para exercício da cidadania, para defesa dos direitos humanos e para conhecimento da história recente do país. As iniciativas de “acerto de contas com o passado”, embora tardias no Brasil, repercutem seu caráter inconcluso e desdobram-se no ciberespaço, conforme visto. Muitos desafios se impõem à continuidade na luta contra os desdobramentos, extremamente atuais, das arbitrariedades e violações perpetradas durante o regime militar. Podem ser apontadas a utilização sistemática da tortura nos sistemas carcerários e a ocorrência de execuções extrajudiciais para delinear a permanência do desrespeito aos direitos humanos por parte do Estado brasileiro.

A garantia do direito ao acesso aos registros administrativos e a informações sobre os atos do governo, expresso na Constituição de 1988, encontra no recolhimento e entrega dos acervos do Serviço Nacional de Informações, e fundos correlatos, ao Arquivo Nacional. O decreto 5.584, de 18 de novembro de 2005, determina que os documentos produzidos e recebidos que estavam sob custódia da Agência Brasileira de Inteligência sejam recolhidos ao Arquivo Nacional. Para coordenação, planejamento e supervisão do recolhimento foram designados membros da Casa Civil, do Gabinete de Segurança Interinstitucional da Presidência da República; Secretaria-Geral da Presidência da República, do Ministério da Defesa, Ministério da Justiça e Advocacia-Geral da União. Para execução das atividades técnicas necessárias a esse recolhimento foi criado um grupo composto por cinco representantes do Arquivo Nacional e cinco representantes da ABIN, considerado como prestação de relevante serviço público, sendo, portanto, isento de remuneração. A garantia de acesso viria em expresso seu art. 10, determinando que “recolhidos ao Arquivo Nacional, os documentos referidos no art. 1o deverão ser disponibilizados para acesso público” (BRASIL, decreto 5.584, de 18 de novembro de 2005), resguardadas a manutenção de sigilo e confidencialidade, nos termos do Decreto nº 4.553, de 27 de dezembro de 2002.

Assim, a questão da inacessibilidade desses documentos seria posta em xeque pelas atribuições e atuação da Comissão Nacional da Verdade. Sobre o encaminhamento de cinco ofícios ao Ministério da Defesa, ainda no ano de 2012, quatro ofícios se referiam a pedido de informação e um para apoio logístico à diligência. No ano seguinte, são enviados 27 ofícios novamente ao Ministério, 23 tratam sobre pedido de informação, um se refere ao encaminhamento de informações requeridas pelo MD e um envio de resposta. No entanto, o relatório final da CNV destaca

o Ofício no 293/2012, datado de 4 de outubro de 2012, por meio do qual se solicitou o recolhimento de documentos produzidos pelos extintos serviços secretos CIE [Centro de Informações do Exército] e Cenimar [Centro de Informações da Marinha] durante o regime militar (1964-85) ao Arquivo Nacional. Exército e Marinha responderam ao pedido da CNV informando não terem localizado os documentos solicitados. Deve ser sublinhado, também, o Ofício no 405/2012, datado de 6 de dezembro de 2012, por meio do qual foi solicitado o envio, em dez dias, de documentos relativos ao Departamento de Ordem Política e Social do Rio Grande do Sul (DOPS/RS), arquivos da Divisão de Segurança e Informações do Ministério da Educação e Cultura (DSI/MEC), cópia de termo de inventário e de termo de transferência dos documentos classificados como ultrassecretos e listagem dos documentos classificados como ultrassecretos e secretos e reavaliados. Ao responder a tal requerimento, o Exército informou não possuir os documentos do DOPS/RS e a Marinha aduziu não ter encontrado registros sobre documentos recebidos da DSI/MEC (BRASIL, COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE, p. 63)

No relatório final da Comissão Nacional da verdade são feitas referências à evidências de destruição de documentos durante a ditadura. Na perspectiva de luta contra a falta de culpabilização  são apresentadas como atribuições de uma comissão da verdade a adoção de medidas que técnicas e sanções penais para impedir a “subtração, destruição, dissimulação ou falsificação dos arquivos, de modo a evitar a impunidade dos autores das graves violações de direitos humanos” (BRASIL, COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE, 2014, p. 33). Na caracterização sobre a atuação dos DOPS de São Paulo são destacadas sua intensa atuação em relação a outros estados e a destruição de documentos[1] ocorrida durante a transferência dos arquivos do DOPS/SP para Polícia Federal e sua devolução ao estado de São Paulo, em 1990. A documentação existente que hoje se encontra sob guarda do Arquivo Público do Estado de São Paulo “é incompleta, mostrando que parte desses documentos foi desviada. Não há nela, por exemplo, nenhum documento sobre informantes do DOPS/SP, nem sobre agentes que tivessem praticado tortura” (BRASIL, 2014, p. 167).

Contudo, na esteira da análise aqui privilegiada, a anistia de 1979 voltou a ser noticiada com a criação, em 2010, da Comissão Nacional da Verdade[1]. Desde sua criação, passando pelas notícias referentes às apurações com base em depoimentos e documentação levantada do período até a divulgação de seu relatório final, e suas respectivas recomendações para a sociedade brasileira, facilmente são encontradas através dos mecanismos de busca e pesquisas de notícias na web, links para notícias como “Redes sociais da Comissão Nacional da Verdade continuam em expansão”, “Comissão da Verdade inicia trabalho com apoio da Comissão de Anistia”, “Comissão da Verdade aponta 300 nomes por violação no regime militar”, “Comissão da Verdade responsabiliza 377 por crimes durante a ditadura” ou “Dilma: “O silêncio é sempre uma grande ameaça”.

A atualidade da escolha do tema da anistia pode ser encontrada nas questões concernentes ao impasse jurídico sobre a imprescritibilidade dos crimes de tortura, por exemplo, prática recorrente do “Terror de Estado” (PADRÓS, 2007, p. 49) brasileiro durante o regime. As próprias notícias das tentativas de revisão da lei de 1979 e de sua rejeição pelo STF também podem vir à tona. O que fundamentaria essa revisão? Quais as argumentações da rejeição à essa revisão? A própria concepção de que os “dois lados[2]” deveriam ser investigados[3], é, conforme afirma Carlos Fico (2012), sóbrio, contudo falso, uma vez que

As comissões da verdade são criadas para apurar crimes cometidos pelo Estado, não por pessoas. Mais importante, entretanto, é o seguinte: o Estado brasileiro, mesmo durante o regime autoritário, poderia ter combatido a luta armada sem apelar para a tortura e o extermínio. Além disso, muitos ex-integrantes da luta armada – ao menos os que sobreviveram – já foram julgados e punidos (FICO, 2012, p. 49).

Outra relativização pode ser pensada aqui sobre os esclarecimentos necessários à ideia de verdade, dentro da perspectiva das comissões de anistia e de justiça de transição e direitos humanos, discutida sob uma metodologia e conceitos próprios da ciência histórica. Verdade, na acepção discutida pela tríade acima elencada e que orientou os trabalhos da CNV, seria a busca pelo esclarecimento de acontecimentos envoltos em incertezas e versões contestáveis desses fatos, especialmente após o acesso aos “documentos sensíveis” (FICO, 2012, p.53), disponibilizados através da Lei de Acesso à Informação.[4]

A participação de historiadores nestas comissões é caracterizada por Carlos Fico como ceifada por conflitos de dimensões epistemológica e ético-moral do Tempo Presente, como por exemplo, no que se refere ao uso de fontes orais. Se por um lado o  evidenciar do testemunho daqueles que sobreviveram aos eventos traumáticos tem como objetivo evitar o esquecimento, por outro, corre-se o risco de participar de uma iniciativa que “quase sempre, resulta em uma narrativa unívoca” (FICO, 2012, p. 47). O autor relata que tem exemplificado

essa tensão com a narrativa de dois episódios que de fato aconteceram comigo. (…) No primeiro, durante uma palestra, eu fui contestado por uma ex-militante da esquerda que não concordava com a minha tentativa de desmistificar o tom heroico que algumas narrativas sobre a luta armada têm assumido: “eu fui torturada!”, ela disse, levantando-se e me calando. No segundo, durante uma entrevista que fazia com um militar, eu o flagrei quando ele dizia que o AI-5, decretado em 1968, veio depois do sequestro do embaixador norte-americano, ocorrido em 1969; mas ele não estava mentindo: para conforto de seu espírito, a memória do velho general construiu essa cronologia adequada. O testemunho verdadeiro do primeiro exemplo interditou o debate. No segundo caso, a “falsa” memória do general forneceu-me uma percepção compreensiva da constituição de sua trajetória. Como historiador, não tenho como definir o que é a “verdade histórica”, mas posso estimular a reflexão sobre a multiplicidade de interpretações possíveis (FICO, 2012, p. 47-48). 

Na esteira das múltiplas interpretações desse passado e da abordagem dos temas sensíveis em sala de aula, Benoit Falaize (2014), ao debruçar-se sobre esses temas na França, afirma que há mais de duas décadas o ensino de questões delicadas da história surge dos debates escolares, públicos e políticos franceses. Gravitando ao redor destes debates em torno da memória, nas atividades de sala de aula estão sujeitas. Sobre as relações entre Ensino de História e a abordagem dos “temas sensíveis”, clique aqui!

Acesse o Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade:

Volume 1 – Relatório das atividades, conclusões e recomendações da CNV

Volume 2 – Eixos Temáticos

Volume 3 – Mortos e Desaparecidos Políticos

[1] Conforme consta em seu site “A Comissão Nacional da Verdade foi criada pela Lei 12528/2011 e instituída em 16 de maio de 2012. A CNV tem por finalidade apurar graves violações de Direitos Humanos ocorridas entre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988. Conheça abaixo a lei que criou a Comissão da Verdade e outros documentos-base sobre o colegiado. Em dezembro de 2013, o mandato da CNV foi prorrogado até dezembro de 2014 pela medida provisória nº 632.” Disponível em http://www.cnv.gov.br/institucional-acesso-informacao/a-cnv.html Acessado em janeiro de 2017.

[2] Também conhecida como Teoria dos Dois Demônios.

[3] Disponível em : https://oglobo.globo.com/brasil/comissao-da-verdade-nao-investigara-crimes-de-militantes-de-esquerda-6115244#ixzz4lUt8YoFc Acessado em março de 2017.

[4]Lei nº 12.527/2011 regulamenta o direito constitucional de acesso às informações públicas. Essa norma entrou em vigor em 16 de maio de 2012 e criou mecanismos que possibilitam, a qualquer pessoa, física ou jurídica, sem necessidade de apresentar motivo, o recebimento de informações públicas dos órgãos e entidades.

[1] Há no relatório final da CNV uma transcrição que indicaria, de forma mais clara, a destruição de documentos pela ditadura: “destruição Em ofício dirigido ao chefe da Seção Estratégica do Estado-Maior do Exército, em novembro de 1988, o então diretor da DSI do MRE, o embaixador Sérgio Damasceno Vieira, informava que ‘foram nesta data destruídos todos os documentos difundidos pelo Estado-Maior do Exército para o Centro de Informações do Exterior (Ciex), os quais, em virtude da desativação do referido centro, haviam passado para a custódia desta DSI’. Consta no Ofício DSI/MRE no 016, de 18 de novembro de 1988 (COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE, 2014, p. 180).

[1] Conforme apresentação do Inventário dos processos da série Movimentos Contestatórios, do Arquivo nacional, publicado no ano de 2013, “as divisões de Segurança e Informações, denominadas DSI, dos diversos ministérios civis, tiveram sua origem em 1946, na antiga Seção de Segurança Nacional, órgão complementar do Conselho de Segurança Nacional (CSN). Em 1967, receberam sua nomenclatura definitiva e a atribuição de fornecer informações ao Conselho, aos respectivos ministros aos quais estavam subordinadas e ao todo poderoso Serviço Nacional de Informações (SNI)” (BRASIL, ARQUIVO NACIONAL, 2013, p. 7).

[1]Disponível em: https://oglobo.globo.com/opiniao/uma-visao-unilateral-da-lei-da-anistia-14712068  Acessado em março de 2017.

[2] Disponível em: https://oglobo.globo.com/opiniao/uma-visao-unilateral-da-lei-da-anistia-14712068  Acessado em março de 2017.