Podemos tratar da questão da documentação produzida pela polícia política e a multiplicidade de discursos que apesar de díspares, coexistem dentro de um “mesmo prontuário expressando uma verdade aparente”, a saber, o discurso da ordem (o policial), o discurso da desordem (o da resistência) e o discurso colaboracionista (o do delator e da grande imprensa). Estes discursos são, conforme analisados por Maria Luiza Tucci Carneiro (s.d), fundamentados sob a égide da desconfiança e direcionam a lógica da ação de atos “justificados” de violência, tortura e violações de direitos e muitas vezes devemos realizar a avaliação “inversa” dos sentidos das palavras, datas, fatos e imagens que revelavam mais do agente do que com o delito propriamente (CARNEIRO, s.d., p. 4). Isto sem contar com a provável destruição de parte destes documentos, impondo certas dificuldades para essa reconstrução interpretativa do período, não obstante os relatos orais, testemunhos e depoimentos das ações da Comissão de Anistia. Entretanto, para esta autora,
hoje, este corpus documental arquivado segundo a lógica policial, nos oferece a possibilidade de reconstituir a História do Brasil Contemporâneo sob ângulos até então desconhecidos, ou, senão, raramente avaliados pela historiografia nacional e internacional em decorrência do seu “secretismo”. Organizado por assuntos temáticos (dossiês) e por identidade do cidadão (prontuários), estes arquivos oferecem-nos a possibilidade de avaliar a documentação sob três prismas distintos: 1) do viés organizacional de um órgão que, tanto em nível federal como estadual, expressou a “fascistização”do Estado que, nem sempre, ocultou sua verdadeira natureza ditatorial; 2) do viés da cultura, visto que tais documentos encerram valores e preconceitos arraigados ao nível do mental coletivo; 3) do viés do documento propriamente dito que, usado enquanto “prova do crime” (documento-verdade), é passível de manipulação (CARNEIRO, s.d., p. 5).
Conforme vimos, as possibilidades de pesquisa em arquivos e fundos documentais outrora “secretos” avançaram substancialmente com a sanção da Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011, que regulamenta o direito constitucional de acesso às informações públicas. Estes documentos, sob a égide da confidencialidade dos assuntos de Estado, sinalizam atos ilícitos de agente públicos, e são de fundamental importância para os procedimentos da chamada Justiça de Transição. Tornam-se, portanto, “sensíveis[1]”, balizadores da busca por reparações em países que viveram regimes autoritários ou outros processos em que houve o emprego sistemático da violência.Carlos Fico (2012) comenta que a busca por documentos comprobatórios que fundamentem os pedidos de anistia vem ampliando o debate em torno da abertura desses fundos documentais. Para muitas dessas vítimas ou familiares há o caráter doloroso na reunião e composição destes processos. Contudo, na medida em que estes podem ser interpretados como “antidossiês” poderemos ter outra forma de “justiça”, uma vez que “temos a versão dos que foram espionados, presos e torturados e não apenas a dos que espionaram, prenderam e torturaram” (FICO, 2012, p. 53-54).
A importância da preservação da memória histórica no ciberespaço em acervos, repositórios, memoriais, blog ou bancos de dados possibilitam a ampliação de acesso a esses documentos. Igualmente, a abertura e pesquisa destes arquivos, somados aos testemunhos e relatos colhidos pela Comissão Nacional da Verdade, ainda segundo o autor, podem alterar a lógica de impunidade embutida na Lei de Anistia ou mesmo permitir a superação do que denomina “alguns equívocos”, como a argumentação de que a ditadura brasileira não foi violenta.
Neste sentido, a legislação brasileira, através da Lei de Acesso à informação, em seu art. 23, considera, especificamente sobre a segurança da sociedade ou do Estado, imprescindível a classificação de informações cuja divulgação ou acesso irrestrito possam: i) pôr em risco a defesa e a soberania nacionais ou a integridade do território nacional; ii) prejudicar ou pôr em risco a condução de negociações ou as relações internacionais do País, ou as que tenham sido fornecidas em caráter sigiloso por outros Estados e organismos internacionais; iii) pôr em risco a vida, a segurança ou a saúde da população; iv) oferecer elevado risco à estabilidade financeira, econômica ou monetária do País; v) prejudicar ou causar risco a planos ou operações estratégicos das Forças Armadas; vi) prejudicar ou causar risco a projetos de pesquisa e desenvolvimento científico ou tecnológico, assim como a sistemas, bens, instalações ou áreas de interesse estratégico nacional; vii) pôr em risco a segurança de instituições ou de altas autoridades nacionais ou estrangeiras e seus familiares; ou viii) comprometer atividades de inteligência, bem como de investigação ou fiscalização em andamento, relacionadas com a prevenção ou repressão de infrações (BRASIL, Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011). A LAI determina, para documentos com classificações consideradas como ultrassecreta, secreta ou reservada, os prazos máximos de restrição de acesso de 25, 15 e 10 anos, respectivamente, a partir de sua produção. Anteriormente, a classificação incluía a categoria de “confidencial” com prazo de vinte anos para fim da restrição, com prazo de cinqüenta anos para as informações ultrassecretas[1], trinta anos para os designados como secreto e dez anos para os considerados reservados (BRASIL, Decreto 4.553, de 27 de dezembro de 2002).
Com direito garantido de acesso à informação/documentos e a liberdade de construção de redes no ciberespaço, com ênfase nesta pesquisa para a produção de acervos digitais, os mecanismos de Justiça de Transição atrelados à ideia de direito à memória e à verdade encontram um campo fértil para desenvolver suas ações. O princípio da difusão dessas informações e a produção, resultado da interatividade entre os usuários, de conhecimento colaborativo se adéquam às perspectivas de ampla divulgação ou mesmo apuração dos fatos ocorridos, como no caso da Comissão Nacional da Verdade, com promoção de medidas e ações que possam assegurar a não repetição das violações de direitos humanos. De acordo com a inversão dos pressupostos que garantiam a lógica de sigilo a certos documentos, esses acervos ou repositórios, especialmente aqueles que tratam dos documentos oriundos da rede de vigilância política do regime militar, passam a ser colocados à disposição da sociedade, para exercício da cidadania, para defesa dos direitos humanos e para conhecimento da história recente do país. As iniciativas de “acerto de contas com o passado”, embora tardias no Brasil, repercutem seu caráter inconcluso e desdobram-se no ciberespaço, conforme visto. Muitos desafios se impõem à continuidade na luta contra os desdobramentos, extremamente atuais, das arbitrariedades e violações perpetradas durante o regime militar. Podem ser apontadas a utilização sistemática da tortura nos sistemas carcerários e a ocorrência de execuções extrajudiciais para delinear a permanência do desrespeito aos direitos humanos por parte do Estado brasileiro. Assim, sobre a publicização dos documentos sigilosos da ditadura, somos advertidos que
é preciso conhecer para melhor prosseguir na construção da democracia brasileira. São milhões de páginas digitalizadas e preservadas no Arquivo Nacional e em outros arquivos públicos. Outros milhões de documentos, em instituições públicas e privadas, aguardam projetos de digitalização e difusão de informações em rede. Além de patrimônio documental que, embora produzido pelo Estado, permanece ainda hoje desaparecido. É patrimônio do povo brasileiro, e de bandeira de luta de nosso próprio tempo (STAMPA; SANTANA; RODRIGUES, 2014, p. 62).
A garantia do direito ao acesso aos registros administrativos e a informações sobre os atos do governo, expresso na Constituição de 1988, encontra no recolhimento e entrega dos acervos do Serviço Nacional de Informações, e fundos correlatos, ao Arquivo Nacional. O decreto 5.584, de 18 de novembro de 2005, determina que os documentos produzidos e recebidos que estavam sob custódia da Agência Brasileira de Inteligência sejam recolhidos ao Arquivo Nacional. Para coordenação, planejamento e supervisão do recolhimento foram designados membros da Casa Civil, do Gabinete de Segurança Interinstitucional da Presidência da República; Secretaria-Geral da Presidência da República, do Ministério da Defesa, Ministério da Justiça e Advocacia-Geral da União. Para execução das atividades técnicas necessárias a esse recolhimento foi criado um grupo composto por cinco representantes do Arquivo Nacional e cinco representantes da ABIN, considerado como prestação de relevante serviço público, sendo, portanto, isento de remuneração. A garantia de acesso viria em expresso seu art. 10, determinando que “recolhidos ao Arquivo Nacional, os documentos referidos no art. 1o deverão ser disponibilizados para acesso público” (BRASIL, decreto 5.584, de 18 de novembro de 2005), resguardadas a manutenção de sigilo e confidencialidade, nos termos do Decreto nº 4.553, de 27 de dezembro de 2002.
Carlos Fico publicou, no ano de 2008 na Revista do Arquivo Nacional, um artigo intitulado A Ditadura Documentada relatando suas próprias dificuldades a respeito do acesso público de documentos sigilosos, produzidos durante o regime militar. Aponta, como “primeiro historiador brasileiro a trabalhar com um grande fundo documental sigiloso” (FICO, 2008, p. 69), sua experiência como pesquisador nos acervos da Divisão de Segurança e Informações do Ministério da Justiça (DSI/MJ), mais especificamente no fundo sob custódia da DSI – Minas Gerais[2], possibilitados pelo Decreto 2.134, de 1997, que garantia a criação das Comissões Permanentes de Acesso e a autorização para acesso a documentos públicos de natureza sigilosa. O caráter de permissão de acesso seria objeto de revogação pelo Decreto 4.553, aprovado sem consulta do Conselho Nacional de Arquivos (CONARQ). O governo do presidente Luis Inácio Lula da Silva resolveria o impasse jurídico sobre restrição/acesso aos documentos classificados como sigilosos com a Medida Provisória nº 228, de nove de dezembro de 2004. São dispostos os mecanismos para criação de uma Comissão de Averiguação e Análise de Informações Sigilosas com poder de decisão sobre a autorização de acesso livre ou condicionado aos documentos requeridos. Os passos seguintes rumo à abertura dos arquivos classificados ou restritos do regime militar ocorrem quando da transferência dos fundos do SNI e correlatos ao Arquivo Nacional, através do Decreto 5.584, de 18 de novembro de 2005 e na posterior conversão da MP-228 em lei, de nº 11.111, já no ano de 2005. O autor relata ainda as dificuldades relacionadas à falta de uma sistemática consolidada de consulta aos acervos, citando que
em alguns arquivos públicos, (como na Coordenação Regional do Arquivo Nacional no Distrito Federal), há a prática de se tarjar nomes próprios, buscando-se observar a preservação da intimidade garantida pela lei; em outros, o acesso aos documentos sigilosos é bem mais franco. Os procedimentos de acesso ficam na dependência da interpretação que o dirigente da instituição faça da legislação – o que é uma prática de todo inconveniente (FICO, 2008, p. 74).
Assim, a questão da inacessibilidade desses documentos seria posta em xeque pelas atribuições e atuação da Comissão Nacional da Verdade. Sobre o encaminhamento de cinco ofícios ao Ministério da Defesa, ainda no ano de 2012, quatro ofícios se referiam a pedido de informação e um para apoio logístico à diligência. No ano seguinte, são enviados 27 ofícios novamente ao Ministério, 23 tratam sobre pedido de informação, um se refere ao encaminhamento de informações requeridas pelo MD e um envio de resposta. No entanto, o relatório final da CNV destaca
o Ofício no 293/2012, datado de 4 de outubro de 2012, por meio do qual se solicitou o recolhimento de documentos produzidos pelos extintos serviços secretos CIE [Centro de Informações do Exército] e Cenimar [Centro de Informações da Marinha] durante o regime militar (1964-85) ao Arquivo Nacional. Exército e Marinha responderam ao pedido da CNV informando não terem localizado os documentos solicitados. Deve ser sublinhado, também, o Ofício no 405/2012, datado de 6 de dezembro de 2012, por meio do qual foi solicitado o envio, em dez dias, de documentos relativos ao Departamento de Ordem Política e Social do Rio Grande do Sul (DOPS/RS), arquivos da Divisão de Segurança e Informações do Ministério da Educação e Cultura (DSI/MEC), cópia de termo de inventário e de termo de transferência dos documentos classificados como ultrassecretos e listagem dos documentos classificados como ultrassecretos e secretos e reavaliados. Ao responder a tal requerimento, o Exército informou não possuir os documentos do DOPS/RS e a Marinha aduziu não ter encontrado registros sobre documentos recebidos da DSI/MEC (BRASIL, COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE, p. 63)
Sobre este aspecto, Lucas Figueiredo (2015) apresenta a perspectiva de ocultação de documentos, por militares e civis durante a ditadura, a partir de uma lógica que o autor traça entre os atos de preservar, esconder, mentir e calar ao tratar das relações entre o Estado brasileiro e as políticas de acesso a documentos a partir de 1964. A perspectiva da permanência da ocultação desses arquivos é delineada pelo autor ainda durante o ano de 1985, diante da postura amistosa do ex-senador Tancredo Neves, escolhido através de eleição indireta naquele ano, em relação à caserna e seus arquivos secretos. O autor cita o presidente, em sua primeira entrevista coletiva concedida após o pleito, tratando sobre os crimes cometidos pelos militares durante a ditadura:
Reabrir esse problema seria implantar no Brasil o revanchismo, e nós não cuidaríamos do presente nem do futuro. Todo o nosso tempo seria pequeno para voltarmos realmente a esse rebuscar, a essa revisão, a esse processo de inquirição sobre o passado. Não creio que a sociedade brasileira aspire por isso (RIBEIRO apud FIGUEIREDO, 2015, p. 49).
Com a repentina morte de Tancredo Neves, o governo Sarney não parecia preocupar os militares e os arquivos sigilosos continuariam sob controle das Forças Armadas. Contudo, nas eleições para sucessão presidencial, ocorridas no ano de 1989, o cenário político alertava as Forças Armadas com a presença de candidatos como o ex-sindicalista Luis Inácio Lula da Silva e a coligação formada pelo Partido dos Trabalhadores e o Partido Comunista do Brasil ou Leonel Brizola, historicamente um grande opositor da ditadura. Havia também Fernando Gabeira, ex-miltante do Movimento Revolucionário Oito de Outubro, com envolvimento no sequestro do embaixador norte-americano Charles Elbrick, em 1969. Ainda de acordo com Figueiredo, alguns meses antes da eleição, em uma operação confidencial, agentes do SNI foram a campo para mapear as intenções de cada candidato com relação ao órgão. Deste modo, o resultado não agradou a cúpula do serviço secreto. Os dois primeiros colocados nas pesquisas de intenção de voto, o ex-governador de Alagoas Fernando Collor de Mello, do Partido da Reconstrução Nacional (PRN), e Lula, defendiam a extinção do Serviço Nacional de Informações. Brizola, falava em manter o SNI, porém “democratizando-o”, sem esclarecer o que isso significava. Com a possibilidade de perda de controle dos arquivos sigilosos por parte da Forças Armadas, entra em cena um projeto SNI para destruição de qualquer material que pudesse ser usado, num contexto político ou jurídico, contra os agentes das áreas de informação ou repressão. Assim
começava a operação limpeza nos arquivos da ditadura. O SNI decidira destruir os prontuários biográficos comprometedores, mas não havia ordem expressa para eliminar outros tipos d documento. Portanto, em 1989, parte do acervo do Serviço Nacional de Informações começou a ser destruída, com o objetivo de ocultar provas, mas parte foi preservada (FIGUEIREDO, 2015, p. 52).
Este movimento do SNI de ocultação/destruição foi seguido pelo Exército, Marinha e Aeronáutica, mapeando arquivos e submetendo-os em remessas anuais ao Estado-Maior das Forças Armadas. Com a vitória eleitoral de Collor, o SNI se encontrava sob sua mira, obrigando o ministro-chefe responsável pelo órgão, general Ivan de Souza Mendes, a solicitar a devolução de todos os documentos do SNI arquivados na Divisão de Segurança e Informações do ministério da Agricultura, através de carta confidencial ao ministro Iris Resende. Provavelmente esta solicitação não se restringiu ao Ministério da Agricultura, mas estendido a outros ministérios civis e suas respectivas DSI. Após o impeachment de Collor, o vice-presidente Itamar Franco assume a presidência e tem que lidar, rapidamente, com a mobilização de uma comissão de familiares com o propósito de entregar um dossiê sobre mortos e desaparecidos políticos. Em uma audiência com o novo Ministro da Justiça, Maurício Corrêa, determinou a criação de outra comissão, com participantes do Exército, Marinha e Aeronáutica com objetivo de esclarecer o paradeiro dos desaparecidos políticos, resultando no primeiro gesto do Executivo de instar as Forças Armadas a abrir seus arquivos sigilosos.
O posicionamento dos militares se deu através de um relatório em que informavam o que constaria em seus arquivos sobre cada um dos desaparecidos políticos. Algumas poucas mortes foram oficialmente reconhecidas, deixando de lado os esclarecimentos sobre o envolvimento de militares em outras ações, o que se manteve nos pedidos de esclarecimentos posteriores, como nos casos da carta-bomba à sede da OAB-RJ, culminando na morte da secretária Lyda Monteiro da Silva, da morte de Stuart Angel Jones ou mesmo no tratamento dado às denúncias sobre a repressão aos opositores no Araguaia. Os militares, por seu turno, afirmavam que não havia dados que comprovassem a versão de desaparecimento ou morte de 47 dos 64 guerrilheiros em questão, uma vez que se baseavam apenas no noticiário da imprensa ou entidades de defesa dos direitos humanos. Ainda de acordo com Lucas Figueiredo, a lógica adotada pelas Forcas Armadas passaria a ser fundamentada em mentiras, dissimulações e omissões nas explicações dos evidentes casos de mortes, torturas e outras graves violações aos direitos humanos, como na falta de informação sobre os fundamentos de muitas prisões ou detenções. Neste sentido, o relatório final da CNV registra 191 mortes por execução sumária e ilegal, e aquelas decorrentes de tortura perpetradas por agentes a serviço do Estado entre os anos de 1946 e 1988, tendo ocorrido de forma sistemática entre 1964 e 1985. A Comissão destaca no relatório que
os homicídios eram cometidos pelos órgãos de segurança com uso arbitrário da força em circunstâncias ilegais, mesmo considerado o aparato institucional de exceção criado pelo próprio regime autoritário, iniciado com o golpe de 1964. Esses crimes foram praticados dentro de complexa estrutura constituída no interior do aparelho estatal, ou com a vítima sob custódia do Estado, ainda que fora de uma instalação policial ou militar, ou em locais clandestinos de tortura e execuções. A grande maioria dessas mortes ocorreu em decorrência de tortura, quando os presos eram submetidos a longos interrogatórios. Para ocultar as reais circunstâncias desses assassinatos, os órgãos de segurança montaram encenações de falsos tiroteios, suicídios simulados ou acidentes. Quase sempre ocultados, alguns corpos foram entregues às famílias para seu sepultamento civil em caixão lacrado, para esconder as marcas de sevícia (BRASIL, COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE, 2014, p. 438).
A questão sobre as restrições de acesso aos arquivos das campanhas militares contra a guerrilha no Araguaia e falta de informações sobre o local de sepultamento dos corpos é retomada seis meses após a posse de Lula em seu primeiro mandato (2002-2006) com a condenação da União em sentença expedida pela juíza federal Solange Salgado, da 1ª Vara da Justiça de Brasília, para a abertura desses arquivos. Recorrendo da sentença duas vezes (agosto de 2003 e julho de 2005), o governo, em contrapartida determina a criação do Centro de Memória sobre a Repressão Política no País e a transferência dos arquivos do SNI para o Arquivo Nacional, enquanto aguardava a Justiça pelo cumprimento da sentença. Embora com posicionamento notoriamente favorável à abertura dos arquivos em torno da questão do Araguaia, o Ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos foi voto vencido, prevalecendo “a vontade das forças armadas, do então Ministro da Defesa, o embaixador José Viegas Filho, e do próprio Lula. Os arquivos continuariam fechados” (FIGUEIREDO, 2015, p. 82). O autor enfatiza o caráter conciliatório do governo Lula, mesmo com significativos avanços em torno do acesso a essa documentação, evitando assim “uma agenda que pudesse colocá-lo em rota de colisão com as Forças Armadas” (FIGUEIREDO, 2015, p. 82), resultando nas apelações da sentença através dos recursos Advocacia Geral da União. Conforme vimos anteriormente, não obstante as modificações jurídicas sobre acesso a “documentos sensíveis”, a falta de maiores esclarecimentos em torno dos mortos ou desaparecidos envolvidos na guerrilha do Araguaia resultou na condenação do Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Deste modo, os pedidos de informação e pesquisa nos fundos digitalizados e hoje disponíveis para consulta se avolumaram, somando entre maio de 2012 e fevereiro de 2018, 1.535 pedidos de acesso à informação ao Arquivo Nacional, conforme consulta ao portal e-sic, Sistema Eletrônico do Serviço de Informação ao Cidadão. Destas solicitações apenas três se encontram na situação de tramitação dentro do prazo. As demais se encontram como respondidas, concedendo acesso a 1.127 pedidos, negando o atendimento em sete. Estes se encontram com as justificativas de “processo decisório em curso”, “dados pessoais”, “pedido incompreensível” e “pedido desproporcional ou desarrazoado”.
A própria documentação sobre os movimentos pela anistia e sua atuação no Maranhão, sob o olhar do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), foi resultado de um pedido de pesquisa ao Arquivo Nacional. Sobre a localização e o “caminho das pedras” desses arquivos, externo uma vez mais minha gratidão à Haroldo Saboia.
O Comitê Brasileira pela Anistia – Seção Maranhão foi criado em lança em 28 de março de 1979, com a realização de um ato público no Centro de Formação de Líderes da Arquidiocese de São Luis. De acordo com o documento nº 057/116/AFZ/79 do Serviço Nacional de Informação, sua diretoria era constituída por: Reginaldo Carvalho Telles de Souza – advogado(presidente); Haroldo Saboia – Deputado Estadual MDB/MA (1º vice-presidente); José Augusto Mochel – médico (2º vice-presidente); Marileide Vasconcelos – médica (1ª secretária); Aldo de Jesus Muniz Leite – Técnico em Artes Cênicas (2º secretário); José de Ribamar Vieira Feitosa – escritor (1º tesoureiro); Luís Pedro de Oliveira e Silva – jornalista (2º tesoureiro). Em 18 de abril de 1979, lança a primeira edição do Jornal Anistia!
Para acessar a documentação do DOPS/MA sobre a criação do Comitê Brasileiro pela Anistia – Seção Maranhão, clique aqui!
Ou clique sobre a temática para acessar os dossiês:
Relação de brasileiros no exterior: Parte1 – Parte 2
Reintegração dos punidos pela Revolução
Comissão de recepção dos exilados
Campanha contestatória contra o projeto de Anistia
Campanha contra ASIAtuação de grupos contrários à Revolução
Atuação do Comitê de Direitos Humanos e CBA/MA
[1] O decreto 4553/02, em seu artigo 7º, parágrafo 1º, determina que “o prazo de duração da classificação ultrassecreto poderá ser renovado indefinidamente, de acordo com o interesse da segurança da sociedade e do Estado”, revogado pelo decreto 7.845, de 2012.
[2] Conforme apresentação do Inventário dos processos da série Movimentos Contestatórios, do Arquivo nacional, publicado no ano de 2013, “as divisões de Segurança e Informações, denominadas DSI, dos diversos ministérios civis, tiveram sua origem em 1946, na antiga Seção de Segurança Nacional, órgão complementar do Conselho de Segurança Nacional (CSN). Em 1967, receberam sua nomenclatura definitiva e a atribuição de fornecer informações ao Conselho, aos respectivos ministros aos quais estavam subordinadas e ao todo poderoso Serviço Nacional de Informações (SNI)” (BRASIL, ARQUIVO NACIONAL, 2013, p. 7).
[1] Para THIESEN (2013), “documentos sensíveis podem ser definidos provisoriamente como aqueles que foram produzidos ou recebidos durante as atividades dos organismos produtores ou doadores no âmbito das suas atividades, cujo conteúdo documental contém segredos de Estado e/ou expressam polêmicas e contradições envolvendo personagens da vida pública ou de seus descendentes. Objeto de disputas e jogos de poder, os arquivos guardam documentos com informações de interesse público, ainda que seu acesso contrarie a vontade de alguns grupos atuantes envolvidos em fatos comprometedores que desejam manter em segredo. A memória se torna objeto de disputas, sobretudo em períodos de transformações políticas, sendo o documento matéria importante no tocante às crescentes buscas pela restituição à história oficial de uma “memória justa” (THIESEN, 2013, p. 5-6). Neste sentido, a sala de aula se torna um espaço privilegiado para a problematização do passado, especialmente dos eventos relacionados a um “passado traumático”.