Nas disputas pela memória, em especial ensejada em torno da anistia e sua utilização como argumento para evitar a responsabilização judicial dos agentes da repressão, temos uma trajetória que oscila entre as possibilidades de reinterpretação da lei, particularmente sobre a retirada da abrangência da medida expressa no termo “crimes conexos[1]”, conforme descrito e discutido até aqui sobre outra perspectiva analítica. Neste caso, os desdobramentos dessa reciprocidade recairiam sobre a sociedade brasileira, seja em sua memória (nacional) coletiva ou na memória individual dos atingidos pela violência do regime ditatorial.
Especialmente sobre seu caráter de reciprocidade que garantiu a extensão da “graça” concedida pela lei também aos agentes de repressão do Estado e excluiu outras categorias de seu perdão, demonstrando um caráter restrito e de estratégia contrarrevolucionária em nome da manutenção da ordem (LEMOS, 2002, p. 289).
Deste modo, a anistia brasileira, pode ser pensada como resultado de um intenso debate entre os posicionamentos do Movimento Democrático Brasileiro (MDB), canalizando os anseios das mobilizações populares, e o estratagema da Aliança Renovadora Nacional (ARENA)[1] de minar essas propostas de emendas e substitutivos. No dia 28 de agosto de 1979 é promulgada a Lei nº 6.683, “concede anistia e dá outras providências”. Nela é delimitado o período entre 02 de setembro de 1961 (data de concessão da última dessas medidas no Brasil) a 15 de agosto de 1979. São anistiados todos aqueles que cometeram “crimes políticos ou conexos com estes”, crimes eleitorais, que tiveram a suspensão de direitos políticos, exoneração e afastamento de serviço público, citando também militares, dirigentes e representantes sindicais punidos com base nos Atos Institucionais e Complementares.
O projeto foi aprovado com um único veto que exclui da parte final do artigo 1º a expressão “e outros diplomas legais” no que se refere à fundamentação das punições. Nas palavras do próprio Figueiredo, esta daria à lei “alcance demasiado, incompatível com a inspiração do diploma de anistia política” (Mensagem 267, de 28 de agosto de 1979). Redigida deste modo, a lei “desprezaria o pressuposto político da sanção, chegando ao extremo privilégio de alcançar todo e qualquer ato ilícito porventura cometido, independentemente de sua natureza ou motivação” (Mensagem 267, de 28 de agosto de 1979).
Os artigos seguintes da Lei de Anistia apresentam seu caráter restrito e de reciprocidade. São considerados como crimes conexos aqueles de qualquer natureza relacionados a crimes políticos ou que tiveram motivação política. Denunciado pelos críticos do projeto aprovado como um eufemismo para garantir a “impunidade dos que sequestraram, prenderam ilegalmente, torturaram e mataram, sob a capa de serviço à nação e de luta contra os subversivos” (RODEGHERO, 2014, p. 106), especificamente seu parágrafo 1º aponta na direção do esquecimento desejado pelo programa governamental em nome da pacificação nacional, protegendo o Estado e seus agentes de uma culpabilização, demanda já possível naquele momento. Sob outra perspectiva, o artigo seguinte exclui do benefício da anistia os que foram condenados pela prática de crime de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal, os denominados “crimes de sangue”, bem como determina o prazo de um ano a partir da vigência da lei para a atuação dos anistiados em partido político legalmente constituído.
Na mensagem nº 59, de 28 de junho de 1979, que abre o projeto de lei, João Batista Figueiredo contextualiza a anistia no bojo de uma nova política brasileira inserida na superação de um período que “requerera procedimentos às vezes traumáticos e de caráter excepcional”. Nestes termos, podemos conceber a anistia como
um ato unilateral de Poder, mas pressupõe, para cumprir sua destinação política, haja, na divergência que não se desfaz, antes se reafirma pela liberdade, o desarmamento dos espíritos pela convicção da indispensabilidade da coexistência democrática. A anistia reabre o campo de ação política, enseja o reencontro, reúne e congrega para a construção do futuro e vem na hora certa (CONGRESSO NACIONAL, COMISSÃO MISTA SOBRE ANISTIA, 1982, p. 16).
Dentro deste ato, que o presidente considera como significativo e profundo, são embutidos a reciprocidade e o espírito de conciliação para a pacificação nacional, baseando-se em uma alardeada e revisitada tradição de anistias do Brasil. São evitados, assim, pretextos para se cultivar animosidades, revanchismos ou “sentimentos divisionistas”, conforme enfatizava o senador Marcos Freire (MDB/PE), na tentativa de emplacar um substitutivo no projeto de lei através da emenda nº 1. Neste projeto de lei foram encaminhadas 305 emendas propondo alterações e inclusões de artigos, evidenciando os embates e os rumos que o projeto deveria tomar sobre abertura, mesmo que estes sejam divergentes daqueles que os movimentos sociais pressionavam. Na leitura do deputado Roberto Freire, também do MDB-PE, a anistia “promulgada em 1979 não foi aquela que o povo desejava. Parcial e restrita cometeu injustiça e descriminações odiosas e incompatíveis com a própria ideia da Anistia, tal como universalmente conhecida” (CONGRESSO NACIONAL, 1982, p. 16).
Acesse aqui a compilação dos embates durante a Comissão Mista para apreciação no Congresso Nacional.
[1] O Ato Institucional nº 2, de 27 de outubro de 1965, estabeleceu o bipartidarismo. A partir de então, somente duas agremiações políticas coexistiram: o Movimento Democrático Brasileiro (MDB) e Aliança Renovadora Nacional (ARENA). Este quadro manteve-se até a reforma partidária implementada pelo Governo Figueiredo.