Arquivos e temas sensíveis no Ensino de História

A apropriação do uso e ressignificação do passado através da relação entre ensino de história e novas tecnologias, objeto privilegiado no tópico seguinte, passa pela relação que cada sociedade historicamente tem com seu passado, suas opções de discurso e reprodução dos meios de manutenção desses silenciamentos e esquecimentos deliberadamente operacionalizados no ensino de história. Logo, se faz necessário compreender que as relações entre “escola e cultura, possibilitaram a melhor compreensão do papel desempenhado pela escola na produção da memória coletiva, das identidades sociais e da reprodução (ou transformação) das relações de poder” (MONTEIRO, 2003, p. 9). Dentro dessa perspectiva, podemos pensar as relações entre ensino de história e as abordagem dos chamados “temas sensíveis” em sala de aula, bem como as complexidades de reflexão sobre um

processo histórico que envolveu grande dose de violência – sobretudo a prisão arbitrária de pessoas, seguida quase sempre de tortura e, várias vezes, de morte -, a ditadura militar brasileira pode ser pensada em conjunto com outros eventos ‘traumáticos’ característicos do século XX, o que situa esse tema no contexto dos debates teóricos sobre história do Tempo Presente[1](FICO, 2012, p. 44).

Circe Bittencourt assevera a importância, para alguns pesquisadores da área de ensino de História, do domínio conceitual da história do tempo presente, de modo que o ensino da disciplina possa cumprir suas finalidades: “libertar o aluno do tempo presente.” Essa aparente contradição tem como pressuposto a ideia de que o

(…) domínio de uma história do tempo presente fornece conteúdos e métodos de análise do que “está acontecendo” e as ferramentas intelectuais que possibilitam aos alunos a compreensão dos fatos cotidianos desprovidos de mitos ou fatalismos desmobilizadores, além de situar os acontecimentos em um tempo histórico mais amplo, em uma duração que contribui para a compreensão de uma situação imediata repleta de emoções. O estudo do contemporâneo – no dizer do historiador Michel Trebisch, uma das “virtudes pedagógicas” – sempre foi favorecido pelos planos escolares, embora tenha sido apresentado como apenas uma história factual, e na maioria das vezes, para cumprir desígnios ideológicos de determinados grupos de poder governamental (BITTENCOURT, 2011, p. 151-152).

A ausência de maiores problematizações nas abordagens do currículo escolar em história, especialmente no que diz respeito aos “temas sensíveis”, leva a sua naturalização ou, mais além, ao silenciamento, relegando-os a meros fatos isolados em seleções e esquemas simplificados (nada fortuitos) nos livros didáticos. Em nome de uma retórica humanizadora, de um saber colaborativo, crítico, atuante e cidadão, as definições e parametrizações nos direcionam para a exigência de um ensino de história que se distancie de estereótipos e simplismos.

No que se refere às graves violações de direitos humanos ocorridos durante o regime militar brasileiro, como ficam as abordagens às esses temas sensíveis? Quando historicizados, nos remetem diretamente às questões como cidadania, justiça social, igualdade, liberdade, direitos historicamente conquistados, frutos da mobilização e luta de muitos agente sociais. No entanto, ao serem tratados como polêmicos ou parcialmente inadequados à faixa etária discente, são diminuídos em sua importância como processo histórico, eliminando a reflexão acerca das rupturas e permanências no processo histórico, de usos do passado e do engendramento de uma “atitude historiadora” acrítica, passiva e reprodutora das explicações e métodos tradicionais de construção do conhecimento histórico.

A garantia jurídica de impunidade dos agentes que atuaram na repressão dos opositores do regime, promovida pela Lei de Anistia, além do esquecimento desejado pelos legisladores e pelo governo de João Batipsta Figueiredo, bem como o apelo ao discurso conciliatório, pacificador, trazendo em seu bojo o assunto como “um passado que não deveria ser lembrado” e remetendo às feridas e cicatrizes de outrora, nos permitem refletir sobre as abordagens em sala de aula de tais temáticas e as opções, seleções, silêncios e memórias subjacentes ao posicionamento do professor e seu “lugar social” diante dessas abordagens. Assim, não revisitar esse passado ou o uso que se faz dele tem eco (ou não) dentro e fora da sala de aula.

Nesse sentido, (re)pensar a Lei de Anistia constitui-se como uma demanda do presente, uma vez que mais de 75 mil pedidos de anistia foram encaminhados ao Ministério da Justiça e ao Ministério da Defesa. A negação da revisão da Lei de Anistia pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2010, definida pela ADPF nº 153, a condenação do Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos[2] e a negação da acusação de estupro e outras torturas infligidas à Ines Ettiene Romeu pelos agentes do Estado brasileiro, atualizam a necessidade de problematização/inserção dessas questões no cotidiano escolar. As temáticas em torno da Lei de Anistia, portanto, são aqui consideradas centrais para a formação de um “cidadão crítico e atuante”, disposto a compreender a sociedade em que está inserido e com atuação sobre essa realidade e, portanto, transformá-la (ou mantê-la), fundamentando suas ações, no que concerne a educação escolar básica, no desenvolvimento de competências e habilidades para, como afirma a competência nº 7:

Argumentar com base em fatos, dados e informações confiáveis, para formular, negociar e defender ideias, pontos de vista e decisões comuns que respeitem e promovam os direitos humanos e a consciência socioambiental em âmbito local, regional e global, com posicionamento ético em relação ao cuidado de si mesmo, dos outros e do planeta (BRASIL, BNCC, 2017, p. 8).

Como apontar para uma “formação humana integral” que visa à construção de uma sociedade “justa, democrática e inclusiva”, pautada em ideais de justiça, igualdade, democracia e cidadania? Em se tratando de nosso “passado recente”, como estão sendo abordados os “temas sensíveis” em sala de aula? Como a anistia, dentro desta perspectiva, pode ser inserida no cotidiano escolar, ultrapassando as parcas linhas que lhe são dedicadas nos livros didáticos? Esta disputa pela memória não está fora do ciberespaço. A criação de alguns sites tenta “resguardar” parte dessa memória traumática, especialmente os projetos Memórias da Ditadura[3], Brasil Nunca Mais Digit@l[4], o banco de dados e acervos dos projetos Memórias Reveladas[5], Documentos Revelados[6] ou Memorial da Anistia[7]. Resultado de grandes esforços coletivos de preservação de nossa memória histórica, o marcante lema deste último, “conhecer, reparar e não repetir”, demonstra a grande preocupação e luta para não esquecermos, naturalizarmos ou silenciarmos nossa(s) história(s).

Na esteira das múltiplas interpretações desse passado e da abordagem dos temas sensíveis em sala de aula, Benoit Falaize (2014), ao debruçar-se sobre esses temas na França, afirma que há mais de duas décadas o ensino de questões delicadas da história surge dos debates escolares, públicos e políticos franceses. Gravitando ao redor destes debates em torno da memória, nas atividades de sala de aula estão sujeitas

à interrogação de uma sociedade inteiramente convidada a examinar o interior da escola e de seus conteúdos de ensino de história, a fim de ver nele ocultamentos, omissões ou amnésias sociais. (…) Não há volta às aulas ou uma atualização memorial ou legislativa, sem que os conteúdos de história abordados na escola, ou mesmo, a maneira de contar a história da França, sejam questionados, interrogados e ordenados a dar conta dos traumas do passado nacional (FALAIZE, 2014, p. 3).

Certamente ressalvadas as especificidades históricas de cada país, no Brasil, diferentemente da França, tem crescido um movimento (e uma proposta de lei) denominado “Escola sem partido”, voltando-se contra o que chama de “abuso intolerável da liberdade de ensinar”, vitimizando os alunos, caracterizando-os como vulneráveis e em processo de formação. Afirmam denunciar que, sob o (neste caso caracterizado como) “pretexto” de construção de uma sociedade mais justa ou combater o preconceito, professores de diversos níveis “vêm utilizando o tempo precioso de suas aulas para ‘fazer a cabeça’ dos alunos sobre questões de natureza político-partidária e moral”[1]. As alegações baseiam-se no que denominam de “doutrinação política  ideológica em sala de aula”,  que se choca diretamente com a liberdade de consciência do estudante. Neste caso, o programa Escola Sem Partido caracteriza essa “doutrinação” como uma afronta ao “princípio da neutralidade”, pondo em ameaça “o próprio regime democrático na medida em que instrumentaliza o sistema de ensino com o objetivo de desequilibrar o jogo político em favor de um dos competidores” (PORTAL ESCOLA SEM PARTIDO, s.d.).[2]

Voltando-nos à reflexão de Benoite Falaize, na contramão dessa tendência que se configura no Brasil atualmente, a história na França se tornou um tema delicado, uma dessas “questões vivas no ensino”. A autora sistematiza tais questões como tema de ensino “vivo” sob três eixos: o primeiro relaciona-se com a vivacidade da questão em toda a sociedade, sua repercussão nas mídias e o fato de constituírem-se como objetos de controvérsia. O segundo diz respeito aos debates dentro da própria disciplina histórica e suas (re)interpretações historiográficas, mantendo as questões “vivas”, atuais. Por último, essa vivacidade deve ser delicada em sala de aula, uma vez que pode haver dificuldades por parte do professor em relação aos conhecimentos necessários para ensinar “em função da reação dos alunos” (FALAIZE, 2014, p. 3).

A concepção de aplicação das tecnologias digitais, especialmente nos processos de digitalização de acervos e desenvolvimento de sistemas virtuais de informação, tem promovido uma série de iniciativas que objetivam a preservação da memória e o estabelecimento de novas abordagens sobre períodos diversos da história brasileira, antes protegidos ou silenciados pela confidencialidade dos documentos de Estado. A perspectiva de instrumentalização e disponibilização desses conjuntos bibliográficos e documentais é concebida pelos projetos de preservação da memória histórica nos meios digitais como um modo democratização da informação e exercício pleno de cidadania.  O foco na compreensão de fatos ocorridos durante o regime ditatorial brasileiro se desdobra na perspectiva da promoção dos valores democráticos e dos direitos humanos na educação, em consonância com a normatização dos parâmetros e diretrizes educacionais, e no cumprimento das recomendações expressas no relatório final da Comissão Nacional da Verdade.

A importância da adoção de medidas e procedimentos, por parte da administração pública, para a inclusão de conteúdos que “contemplem a história política recente do país e incentivem o respeito à democracia, à institucionalidade constitucional, aos direitos humanos e à diversidade cultural” (BRASIL, COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE, 2014, p. 970) na estrutura curricular das escolas públicas e privadas dos graus fundamental, médio e superior, se coaduna com a perspectiva de amplo conhecimento desses fatos como modo de evitar sua repetição futura. A coleta, gestão e sistematização desses arquivos por parte fundações, bibliotecas e projetos, impulsionados pelas garantias engendradas pela Lei de Acesso à informação, permitem a reelaboração das memórias do período ditatorial e fomentam novas pesquisas acadêmicas. Mais conhecidos como repositórios digitais institucionais, estas iniciativas reúnem de maneira indexada e organizada um grande número de documentos e produções científicas sobre online sobre a própria instituição ou temática. Segundo definição do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT), os repositórios institucionais lidam com a produção científica de uma determinada instituição. Os repositórios temáticos lidam com a produção científica de uma determinada área, sem limites institucionais. Ainda de acordo com o IBICT, o resultado dessas ações seria a maior visibilidade dos resultados das pesquisas e a grande contribuição para a preservação da memória histórica[1]. A possibilidade de acesso via web a catálogos de pesquisa das mais variadas acervos, arquivos, instituições e bibliotecas, embora altamente benéfica e profícua, nos conduz a algumas considerações sobre o uso deste tipo de reprodução de documentação, em caráter digital.

Diante dessas relações entre cibercultura, história e arquivologia, segundo Rosely Cury Rondinelli (2013), é de fundamental importância os esclarecimentos conceituais sobre documento arquivístico e documento arquivístico digital, diante desse novo momento em que se encontra a concepção de “arquivo”, diante da realidade digital e seus desdobramentos. Para a autora, o documento arquivístico “constitui o registro de ações humanas independentemente da forma como se apresenta e da base em que se encontra afixado” (RONDINELLI, 2013, p. 231), ampliando sua caracterização, definindo-o como “uma parte efetiva das atividades das quais se originam, evidências materiais que sobrevivem na forma escrita” (JENKINSON apud RONDINELLI, 2013, p.213), produzida ou recebida no decorrer das atividades de uma pessoa física e jurídica. No adjetivo que acompanha a noção de documento trabalhada pela autora, as distinções entre documento arquivístico e documento de arquivo também são necessárias uma ve que o primeiro identifica mais adequadamente a entidade em questão, atribuindo-lhe uma qualidade. O segundo possuiria a conotação de lugar: está no arquivo. (JENKINSON apud RONDINELLI, 2013, p. 144). No ambiente digital as particularidades vão além do suporte, uma vez que

nesse novo ambiente, o documento foge totalmente dos padrões mais conhecidos, como linguagem alfabética, registrada em papel e de leitura direta, bem como sua relação inextrincável com o suporte. No mundo digital tudo é codificado em linguagem binária e, para se tornar acessível aos olhos humanos, precisa da intermediação de programas computacionais igualmente codificado em bits, numa sofisticação tecnológica que passa despercebida à maioria dos usuários. Juntem-se a isso as tecnologias de rede, com sua alta capacidade de comunicação (RONDINELLI, 2013, p. 231).

A autora destaca características intrínsecas e extrínsecas aos documentos arquivísticos. O primeiro se refere à composição interna do próprio documento, ou seja, sua articulação e finalidade de transmissão da ação que o próprio documento está inserido, bem como o contexto que o cerca. São apontados ainda cinco elementos constitutivos a serem identificados, a saber: autor, redator, destinatário, originador e produtor. Exatamente como seu correlato em papel, o documento arquivístico digital deve apresentar uma forma fixa, conteúdo estável, relação orgânica, contexto identificável, ação e o envolvimento das características extrínsecas acima mencionadas. Sobre as questões relacionadas à forma fixa e conteúdo estável, pressupõe-se que o arquivo digital deverá manter a mesma apresentação que tinha quando “salvo” pela primeira vez. Sobre sua organicidade, devem ser observados os vínculos inextrincáveis entre as atividades que registram e a própria produção do documento, identificando o contexto de sua produção e gestão. Assim, juntamente com o fato da possibilidade de produção de um documento arquivístico devido à sua “participação” ou “apoio” em alguma ação são ressaltados seus elementos constitutivos: forma documental, anotações, contexto, suporte e atributos. Especificamente sobre o meio digital, é acrescentado o componente referente ao seu formato como um arquivo digital. Os “tipos” de documentos de softwares que são gerados, lidos ou salvos em programas e aplicações específicas, como editores de texto como Word, Openoffice e Bloco de Notas que usualmente trabalham e geram arquivos nos formatos .doc, .odt, .txt, respectivamente.

Desta forma, em consonância com a temática abordada nesta pesquisa, de acordo com Georgete Rodrigues (2014), a noção de arquivo passa por reformulações, no Brasil, em sua relação com a designação dos arquivos produzidos durante o Regime Militar brasileiro. O uso da expressão “arquivos sensíveis” em reportagens, artigos, pesquisas e livros, especialmente a partir do recolhimento dos fundos em poder da ABIN, em 2005, acompanha os debates sobre a abertura e acesso a esses arquivos e as tentativas de reparação financeira, simbólica ou culpabilização dos atos repressivos do Estado brasileiro no período. Assim, é definido que

o ciclo vital da informação pressupõe um processo que se inicia com uma ideia ou um registro gerado e comunicado em canais formais ou informais. Mas não prescinde de mecanismos de preservação e de um universo de usuários ou do público a que se destina. Apesar de guardada, censurada, camuflada durante décadas, a informação contida nos documentos produzidos pelas instituições da repressão – aqui denominamos “sensíveis” – renasce e toma seu lugar nãos mais como notícia, mas como história (THIESEN, 2014, p. 15).

Neste sentido, a tensa relação entre preservação e conservação de documentos se torna ainda mais complexa quando se trata de regimes ditatoriais. No relatório final da Comissão Nacional da verdade são feitas referências à evidências de destruição de documentos durante a ditadura. Na perspectiva de luta contra a falta de culpabilização  são apresentadas como atribuições de uma comissão da verdade a adoção de medidas que técnicas e sanções penais para impedir a “subtração, destruição, dissimulação ou falsificação dos arquivos, de modo a evitar a impunidade dos autores das graves violações de direitos humanos” (BRASIL, COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE, 2014, p. 33). Na caracterização sobre a atuação dos DOPS de São Paulo são destacadas sua intensa atuação em relação a outros estados e a destruição de documentos[2] ocorrida durante a transferência dos arquivos do DOPS/SP para Polícia Federal e sua devolução ao estado de São Paulo, em 1990. A documentação existente que hoje se encontra sob guarda do Arquivo Público do Estado de São Paulo “é incompleta, mostrando que parte desses documentos foi desviada. Não há nela, por exemplo, nenhum documento sobre informantes do DOPS/SP, nem sobre agentes que tivessem praticado tortura” (BRASIL, 2014, p. 167).

Associação Nacional de História (ANPUH) juntamente com a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS) e a Associação Brasileira de Antropologia (ABA), manifestaram a preocupação da comunidade científica de pesquisadores se posicionado, através da publicação de uma carta aberta em 03 de maio de 2017, contra o projeto de lei nº 146, de 2007. O referido projeto trata da digitalização e arquivamento de documentos em mídia ótica ou eletrônica. Além de definir critérios para as ações propostas é apresentada a possibilidade de destruição física da documentação digitalizada após seu armazenamento em meio eletrônico. Assim,

estabelece que os documentos em meio analógico poderão ser eliminados por incineração, destruição mecânica ou por outro processo adequado que assegure a sua desintegração, lavrando-se o respectivo termo de eliminação. Dispõe que os documentos digitalizados e armazenados em mídia ótica ou digital autenticada, bem como as suas reproduções, na forma desta lei, terão o mesmo valor jurídico do documento original para todos os fins de direito (BRASIL, PROJETO DE LEI DO SENADO n° 146, de 2007).

Em contraposição a esta proposta a ANPUH e demais associações afirmam que a destruição destes documentos equivaleria a destruir a garantia de autenticidade das suas informações, impossibilitando por completo a aferição da autenticidade do documento digitalizado, caso sejam levantadas hipóteses sobre deliberadas alterações posteriores à sua produção. A questão técnica também é levantada no tocante às possibilidades de problemas ou exclusão permanente desses arquivos digitalizados, suscitando a consequente necessidade de constantes investimentos em ambientes tecnológicos e de produção, gestão, recuperação e preservação de arquivos tecnológicos. Sob a alegação de redução de custos, aumento de transparência, aumento de acessibilidade à informação, sustentabilidade ambiental, facilidade de manuseio e redução de espaço físico para os arquivos, a manifestação de parte da comunidade científica contra essa medida expõe uma visão imediatista, que desconsidera preceitos da gestão documental, da preservação de longo prazo, e preocupações relativas à presunção de autenticidade dos documentos[3].

A importância desses arquivos passa pelo viés da preservação da memória história e pela ação de atribuição de um significado a eles. Pierre Nora (1981) aponta, na conceituação de “lugares de memória”, a necessária “vontade de memória”, ou seja, uma intenção memorialista que lhe confira identidade e o diferencie de “lugares de história”, não obstante o jogo de constante sobredeterminação entre ambos. Neste sentido “os lugares de memória nascem e vivem do sentimento que não há memória espontânea, que é preciso criar arquivos, que é preciso manter aniversários, organizar celebrações, pronunciar elogios fúnebres, notariar atas, porque essas operações não são naturais” (NORA, 1981, p. 13). Ao atualizar o debate sobre a importância dessas operações de atribuição de significado em relação à “sensibilidade” dos arquivos contemporâneos e suas disputas memorialísticas, aponta que

o arquivo é de fato a interface, o local de encontro e de conflito entre duas formas de nossa memória contemporânea: a memória vivida e a memória documentada; a memória direta e a indireta, imediata e mediata; a memória testemunhal e a história científica; a memória viva e a memória reconstruída; a memória quente e a memória fria. Daí a noção de “arquivos sensíveis”: são aqueles onde se exprimem a um só tempo a memória e a história. É isso que provoca o desafio dramático e conflituoso dos arquivos contemporâneos: eles pertencem, plenamente, a esses dois tipos de memória histórica e à memória vivida, pois as duas podem legitimamente reivindicá-los e deles se servir. É esse drama e essa tensão entre esses dois tipos de memória que faz dos arquivos, impregnados de emoções sociais coletivas, objeto de disputas apaixonadas (NORA apud THIESEN, 2014, p. 75).

Como podemos perceber no capítulo 1 deste trabalho, a criação e execução de projetos dos mais variados grupos para preservação da memória histórica e esclarecimento de fatos ocorridos durante o período ditatorial brasileiro encontram uma ampla gama de possibilidades no mundo digital. Com isso, são multiplicadas as possibilidades de acesso a grande quantidade de documentos ora restritos, além da pesquisa e produção acadêmica. A possibilidade de problematização de interpretações consolidadas e a publicização de novas narrativas, outrora silenciadas, são desdobramentos significativos dessas iniciativas, sejam institucionais ou temáticas. Sobre este último, para fins deste trabalho, diferenciaremos dos repositórios institucionais, dada suas específicas relações de autoarquivamento e armazenamento da produção científica criadas por determinada instituição e/ou seus membros, a exemplo das Universidades, tratando-os como acervos digitais[4]. Assim, a principal característica dos acervos digitais seria a reunião e disponibilização de material intelectual de uma determinada área de conhecimento ou período, sendo criado e gerido por grupos específicos ou iniciativas individuais.  Distingue-se, portanto, dos repositórios institucionais, especialmente em seu principal atributo: ser institucionalmente definido. As demais características apontadas por Sely Maria de Souza Costa e Fernando César Leite (2010), como ser científica ou academicamente orientado; cumulativo e perpétuo e aberto e interoperável podem ser comuns também aos acervos digitais.

Outra diferença substancial entre os repositórios institucionais e os acervos digitais se refere à utilização de recursos, financeiros e tecnológicos, envolvendo diretamente questões relativas a direitos autorais, políticas de acesso ou mesmo capacidade de armazenamento dos arquivos em servidores. A própria ampliação da ideia de acervo digital englobaria formas mais elementares de estruturação em linguagem HTML, como os websites pessoais ou blogs[5].  Retomando as especificidades das lutas e dos movimentos sociais no contexto do regime militar e suas conseqüências na contemporaneidade, nas premissas de recuperação da memória histórica e difusão de documentos antes sigilosos, se entrelaçam, no ciberespaço, com as perspectivas de interação da expressão individual e coletiva em ambiente de comunicação como “lugar de expressão da memória social” (LOPES et al, 2011, p. 179). Sobre esta perspectiva de uma construção consensual, democrática e de mobilização de vários grupos neste espaço virtual, Levy (1999), aponta que

a verdadeira democracia eletrônica consiste em encorajar, tanto quanto possível — graças às possibilidades de comunicação interativa e coletiva oferecidas pelo ciberespaço —, a expressão e a elaboração dos problemas da cidade pelos próprios cidadãos, a autoorganização das comunidades locais, a participação nas deliberações por parte dos grupos diretamente afetados pelas decisões, a transparência das políticas públicas e sua avaliação pelos cidadãos. Quanto à questão das relações entre cidade e ciberespaço, diversas atitudes já estão sendo adotadas por diferentes atores, tanto teóricos como práticos (LEVY, 1999, p. 186).

Atrelada à ideia de uma nova forma de exercício pleno de democracia, o direcionamento da organiz(ação) desses indivíduos ou movimentos sociais devem ter como alvo “incitar a colaboração coletiva e contínua dos problemas e sua solução cooperativa, concreta, o mais próximo possível dos grupos envolvidos” (LEVY, 1999, p. 195). A ideia defendida pelo autor da emergência do ciberespaço, ele próprio como resultado de um verdadeiro movimento social, com seu líder (a juventude metropolitana escolarizada), sua palavras de ordem (interconexão, criação de comunidades virtuais, inteligência coletiva) e suas reivindicações e aspirações coerentes. Em contraposição a estas liberdades individuais e coletivas ou possibilidades de estabelecimento de “ações necessárias à neutralização das potenciais ameaças cibernéticas que possam interferir com a consecução dos objetivos fundamentais da nação” (BRASIL, MINISTÉRIO DA DEFESA, 2016, p. 14) podemos destacar a preocupação do Exército brasileiro e as atuações no ciberespaço brasileiro. A existência de programas como Programa Estratégico Defesa Cibernética na Defesa Nacional, Projeto Estratégico Defesa Cibernética ou o Sistema Militar de Defesa Cibernética, reforça este argumento, uma vez que todos os programas possuem o objetivo de “identificar as necessidades de segurança e verificar da atuação da defesa cibernética como extensão do papel constitucional das Forças Armadas na defesa nacional e estabelecer as ações necessárias à neutralização das potenciais ameaças cibernéticas que possam interferir com a consecução dos objetivos fundamentais da nação” (BRASIL, MINISTÉRIO DA DEFESA, 2016, p. 15-16). Estes projetos e iniciativas objetivam o uso efetivo do ciberespaço por parte do Ministério da Defesa e pelas Forças Armadas como forma de prevenção da sua utilização contra os interesses da Defesa Nacional. Estas ações se desdobram nas áreas de capacitação, tecnologia e inovação, inteligência e operações, passando pela colaboração com a produção de conhecimento de inteligência e informação, originário de fonte cibernética, de interesse para o Sistema de Inteligência e Defesa (SINDE). No que diz respeito à legislação vigente sobre o assunto, a Portaria Normativa nº 3.389/MD, de 21 de dezembro de 2012, que rege a Política Cibernética de Defesa, traz em seus pressupostos básicos a ideia de estabelecimento de critérios de risco, inerentes aos ativos de informação e a realização de seu gerenciamento, reduzindo os riscos às infraestruturas críticas da informação de interesse da Defesa Nacional “a níveis aceitáveis”. Para o Ministério da Defesa as ações no mundo cibernético são denominadas de acordo com o seu “nível de decisão”: o nível político (Segurança da Informação e Segurança Cibernética), nível estratégico (Defesa Cibernética) e níveis operacional e tático (Guerra Cibernética).

Em meio às discussões sobre liberdades e restrições no uso do ciberespaço é sancionada a Lei 12.965, de 23 de abril de 2014, que estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da internet no Brasil. Conhecido como Marco Civil, esta lei disciplina as atividades no ciberespaço tendo como fundamento o respeito à i) liberdade de expressão, bem como o reconhecimento da escala mundial da rede, aos direitos humanos; ii) o desenvolvimento da personalidade e o exercício da cidadania em meios digitais; iii) a pluralidade e a diversidade; a abertura e a colaboração; iv) a livre iniciativa, a livre concorrência e a defesa do consumidor e v) o reconhecimento da finalidade social da rede. A evidente preocupação do Ministério da Defesa com a atuação e mobilizações na web encontra um dispositivo legal que reforça o ciberespaço como um lugar democrático e com amplos aspectos referentes às liberdades e direitos civis, balizado na liberdade de expressão, na garantia da privacidade dos usuários e na neutralidade da rede.

[1] Verbete disponível para consulta em www.ibict.br/informacao-para-ciencia-tecnologia-e-inovacao%20/repositorios-digitais. Acessado em dezembro de 2017.

[2] Há no relatório final da CNV uma transcrição que indicaria, de forma mais clara, a destruição de documentos pela ditadura: “destruição Em ofício dirigido ao chefe da Seção Estratégica do Estado-Maior do Exército, em novembro de 1988, o então diretor da DSI do MRE, o embaixador Sérgio Damasceno Vieira, informava que ‘foram nesta data destruídos todos os documentos difundidos pelo Estado-Maior do Exército para o Centro de Informações do Exterior (Ciex), os quais, em virtude da desativação do referido centro, haviam passado para a custódia desta DSI’. Consta no Ofício DSI/MRE no 016, de 18 de novembro de 1988 (COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE, 2014, p. 180).

[3] Carta aberta intitulada “não ao descarte de documentação, não à PL146/2007”.  Publicada em https://site.anpuh.org/index.php/2015-01-20-00-01-55/noticias2/noticias-destaque/item/3933-nao-ao-descarte-de-documentacao-nao-ao-pls-n-146-2007

[4] Via verde e dourada

[5] Para a pesquisadora Luciana Oliveira Fortes (2009), “em geral, o b’’log é mantido por uma só pessoa e usualmente possui referências a outras páginas, funcionando como se fosse um diário pessoal. Salientar que a opção diário existe em diversas ferramentas e sua diferenciação com relação aos Blogs está ligada ao fato de que no diário existe um único autor e no Blog pode haver mais de um autor. Eles funcionam de maneira idêntica no que tange o processo de atualização, mas sua origem é muito diferente” (FORTES, 2009, p. 22).

[1]Informações extraídas do site oficial da proposta e do programa disponível em http://www.programaescolasempartido.org/saiba-mais. O programa prevê ainda a afixação de um cartaz em sala de aula com o seguinte conteúdo: 1) O professor não se aproveitará da audiência cativa dos alunos, para promover os seus próprios interesses, opiniões, concepções ou preferências ideológicas, religiosas, morais, políticas e partidárias; 2) O professor não favorecerá nem prejudicará ou constrangerá os alunos em razão de suas convicções políticas, ideológicas, morais ou religiosas, ou da falta delas; 3) O professor não fará propaganda político-partidária em sala de aula nem incitará seus alunos a participar de manifestações, atos públicos e passeatas; 4) Ao tratar de questões políticas, sócio-culturais e econômicas, o professor apresentará aos alunos, de forma justa – isto é, com a mesma profundidade e seriedade –, as principais versões, teorias, opiniões e perspectivas concorrentes a respeito da matéria; 5) O professor respeitará o direito dos pais dos alunos a que seus filhos recebam a educação religiosa e moral que esteja de acordo com suas próprias convicções e 6) O professor não permitirá que os direitos assegurados nos itens anteriores sejam violados pela ação de estudantes e terceiros dentro da sala de aula.

[2] Informações disponíveis em http://www.programaescolasempartido.org Acessado em março de 2017.

[1] Emblemática a argumentação de Francois Dosse à respeito da História do Tempo Presente  “Defenderei, de minha parte, a ideia de uma verdadeira singularidade da noção da história do tempo presente que reside na contemporaneidade do não contemporâneo, na espessura temporal do ‘espaço de experiência’ e no presente do passado incorporado” (DOSSE, 2012, p. 1). Rememorando as palavras de René Rémond “é impossível compreender seu tempo para quem ignora todo o passado; ser uma pessoa contemporânea é também ter consciência das heranças, consentidas ou contestadas” (RÉMOND, 1988, p. 30).

[2] Caso Gomes Lund versus Brasil, referente às violações de direitos humano durante a repressão à Guerrilha do Araguaia, discutidas na seção 2.3

[3] Disponível em:  http://memoriasdaditadura.org.br/index.html. Acessado em fevereiro de 2017.

[4] Disponível em:  http://bnmdigital.mpf.mp.br/pt-br/ Acessado em fevereiro de 2017.

[5]Disponível em:  http://base.memoriasreveladas.gov.br/mr/seguranca/Principal.asp Acessado em fevereiro de 2017.

[6] Disponível em:  https://www.documentosrevelados.com.br/ Acessado em fevereiro de 2017.

[7] Disponível em:  http://memorialanistia.org.br/ Acessado em fevereiro de 2017.